quinta-feira, 15 de abril de 2010

Carta de Apoio - Diagnósticos e perspectivas para o atraso do campo jurídico


Por que a pesquisa em Direito é considerada incipiente e frágil pela comunidade acadêmica brasileira? Por que, segundo o filósofo político Marcos Nobre, a área jurídica cresceu quantitativamente, mas não acompanhou o crescimento qualitativo que a pesquisa em Ciências Exatas, Biológicas e, até mesmo, Humanas (principalmente economia e ciências sociais) alcançou? A resposta a essas perguntas depende da reconstrução do processo de diferenciação da formação do jurista e do cientista brasileiros.

A institucionalização do saber científico no Brasil deve ser observada como o arremate do processo de desvalorização e superação dos saberes “retóricos”, “enciclopédicos”, “generalistas” e, em última instância, “amadores”. A primeira metade do século XX foi caracterizada pelo conflito entre “cientistas” (pautados pelos princípios da especialização do conhecimento, da metodologia investigativa e da profissionalização do estudo) e “bacharéis” (juristas e literatos, representantes da velha erudição universalista). Na verdade, trata-se da disputa por dois projetos políticos distintos acerca da construção do Brasil. Enquanto os “bacharéis” sustentavam o desenvolvimento a partir da valorização das tradições culturais nacionais, os “cientistas” defendiam a especialização intelectual como a possibilidade de introduzir o Brasil no cenário competitivo internacional. Do ponto de vista cientifico, tal processo, popularizado como “a luta contra o papagaísmo”, foi denominado de “Crítica à Razão Pomposa”.

O estabelecimento das Universidades, na década de 1930, a fundação de institutos de pesquisa e de fomento à ciência e o processo de departamentalização, nas décadas de 1950 e 1960, marcaram a vitória dos cientistas. Isso ocorreu em diversos países. No Brasil, entretanto, verificou-se uma particularidade. Os retóricos perderam, mas não foram eliminados: passaram a moldar o pensamento jurídico dominante. Uma das maiores evidências do resultado final desse processo foi a substituição, no transcurso do século XX, dos juristas pelos economistas como quadros decisores do Estado. Enquanto projeto político derrotado, os bacharéis procuraram manter intacta uma esfera de domínio, o Poder Judiciário, que, por suas características tipicamente jurídicas, era naturalmente o espaço mais fácil de sua preservação. Decisões judiciais retóricas demandavam pesquisa e ensino retóricos. A retórica é, assim, estabilizada como mecanismo de imunização e proteção dos juristas em relação aos saberes científicos. Isso é facilmente identificável na verborragia dos juristas e na negação aos padrões de qualidade acadêmica. No campo jurídico, trabalhos interdisciplinares transformaram-se em filosofismo ou sociologismo.

O atual estágio do ensino e da pesquisa em direito deve ser observado nesse contexto. Fala-se da existência de um conflito, no interior do direito, entre formalistas e não-formalistas, dogmáticos e anti-dogmáticos. Um olhar desatento pode pensar que tal conflito reproduz o embate entre “retóricos” (os formalistas e os dogmáticos) e “cientistas” (os não-formalistas e os anti-dogmáticos). Uma observação mais rigorosa afasta, no entanto, essa primeira interpretação. Os juristas anti-formalistas procuram substituir os julgamentos legalistas por decisões baseadas em valores, princípios morais ou interesses sociais. Trata-se de uma disputa por enfoques fundamentadores das decisões judiciais. A influência no âmbito decisório do direito é fator de controle das estruturas do sistema jurídico (posição nos tribunais, nas faculdades de direito e nos escritórios de advocacia). Os juristas anti-dogmáticos não operam com a lógica da ciência: pontos de partida hipotéticos que serão ou não confirmados. Os pontos de chegada são pré-determinados por finalidades e metas políticas previamente definidas. Disputam os espaços de poder com os ditos formalistas. Se a relevância limita-se às metas e às finalidades políticas, evidentemente o processo investigativo e o conteúdo são descartados. São travestidos igualmente pela retórica. Retórica dos princípios, retórica dos valores, retórica da interdisciplinaridade e, agora, retórica das metodologias. Retórica sem conteúdo. Pesquisa sem pesquisa: pseudo pesquisa! Isso pode explicar porque a imensa maioria dos professores anti-dogmáticos não se contenta com o regime de dedicação exclusiva e integral à Universidade e, hoje, lidera as grande bancas de advocacia no país e os principais cargos dos Tribunais. Aqueles que permaneceram na “pesquisa”, tornaram-se donos de Universidades privadas, criadas pela recente expansão do ensino. Pode explicar, ainda, porque citam Aristóteles, Kant, Marx, Habermas e Luhmann em um mesmo parágrafo e são excluídos do debate desenvolvido pelos cientistas sociais especialistas em cada um desses autores.

Com tudo isso, as grandes “transformações” no ensino e na pesquisa em direito não passam de ornamento que encobrem fins e interesses políticos. Não se diferenciam, portanto, do processo retórico estabilizado no sistema jurídico brasileiro. Uma autêntica mudança em direito significa simplesmente iniciar o processo de cientificização que outras áreas do saber deflagraram na primeira metade do século XX. Na sociologia, este processo foi simbolizado pelo dia em que Florestan Fernandes começou a dar aulas na Faculdade de Ciências Sociais da USP de jaleco branco para se identificar como cientista em oposição aos ternos e gravatas dos doutos (nós, juristas), dos bacharéis, caracterizados pelo ecletismo, pelo enciclopedismo e pela retórica que serve ao causídico defender seus interesses. Não temos quadros ou padrão de produtividade científica. Salvo raríssimas exceções, as revistas jurídicas brasileiras desconhecem a figura do “parecerista anônimo”. Todas estas ações podem ser resumidas pela idéia de institucionalização acadêmica do direito como disciplina científica. A condição fundamental para o início deste processo é a defesa e difusão da carreira de professor de direito em tempo integral, dedicado exclusivamente ao ensino e à pesquisa. Por este motivo, gostaria de saudar a iniciativa do presente grupo de professores e manifestar meu integral apoio.

Guilherme Leite Gonçalves
Professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas

4 comentários:

  1. Um ponto atrás: se a retórica é o inimigo e a dogmática e o formalismo são retóricos, como ensinar direito penal ou processo civil?! Tudo bem que a crítica ilustrada é essencial, mas como se estuda direito sem a análise das normas vigentes? Isso não é dogmática?

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  2. Pedimos que os comentários sejam assinados. Isto permite um diálogo mais franco e transparente.
    Darei a conhecer ao Guilherme este comentário. Da parte do grupo candidato, consideramos este debate levantado pelo Guilherme como essencial para a ABEDi. Publicaríamos da mesma forma manifestações que contivessem opiniões divergentes ao Guilherme desde que fosse de apoio ao grupo, obviamente.
    Um abraço.
    Evandro.

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  3. Professor Guilherme, muito bom o texto. Sou João Luis Dias Barros Souza da Universidade do Estado da Bahia, estudo e escrevo sobre a crise no ensino jurídico desde o 3 semestre, assim como lutamos para implantar no cotidiano da nossa universidade (que nada mais é que cumprir "dogmaticamente" a constituição)a interação entre ensino, pesquisa e extensão na formação do criticado bacharel em direito.
    Acredito na mudança, alias não usaria nem mais esse termo mudança, pois de acordo com o professor Pedro Demo, seria um posicionamento que implicitamente já estaria carregado de uma carga valorativa futurista, acredito que o direito possa chegar no debate científico do SEC. XXI, pois não suporto mais as mesmas bases de quase dois séculos de existência, visto que a primeira universidade foi criada em 1827. Bem, minha questão problema da monografia é: "Nós somos capazes de transformar as bases do ensino jurídico no Brasil?" Sendo assim, estou tentando contato com pessoas de todo o Brasil para pedir orientações sobre suas localidades. E como acabei de ler, percebi que o professor é uma destas pessoas.
    Vamos manter contato? Tem mail? Msn? Facebook?
    Gostaria de compartilhar minhas idéias com vocês, não tê-los como um mestre explicador e sim como um Jacotot, onde os saberes são privilegiados por uma ação comunicativa e sem hierarquia.
    Acredito que pode engradecer bastante o meu trabalho.
    Obrigado e parabéns pelo texto.

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  4. Prezado professor,
    Sou docente do curso de direito e tenho percebido indignado a "má-fé institucional" (como diz Jessé de Souza) das instituições de ensino superior (públicas e privadas) de direito, na Bahia, quando publicam processos seletivos com 1 (uma) vaga para o curso de direito oferendo 3 (três) disciplinas. Quer dizer, contrata-se 1 (hum) para fazer o trabalho de 3 (três) e paga-se menos que 1 (hum). Evidentemente que isso somente favorece os mal-intencionados que vivem às custas do magistério superior como "bico". É lamentável termos chegado a esse nível.

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